O fogo apagou assim que
jogaram água na fogueira. Já era tarde e todo mundo decidiu dormir. A música já
tinha parado há algum tempo, então estiveram todos em silêncio nas últimas
horas, cada um absorto em seus próprios pensamentos, reavaliando os últimos
passos que os levaram até ali.
Se conheciam há exatos
20 anos, quase 21, e ainda assim não sabiam tudo um do outro. Alguém sempre
tinha um segredo, muitos desses compartilhados com outros, mas nunca com todos.
E todos, vejam bem, todos tinham segredos.
Decidiram realizar um
encontro para esse final de semana, e num grupo de conversas online todos
disseram que aquele seria O final de semana, O encontro da verdade. Ninguém
sairia dali sem conhecer a história de cada um. Os fardos seriam divididos.
Eis que é chegada a
hora. Tem música, tem comida e bebida. A diversão, ao menos, está garantida,
pois querendo ou não, eles se gostam bastante. Tudo bem que temos dois que não
conseguem se entender, vivem brigando e sempre sentam longe um do outro, mas
todo mundo já entendeu que para aqueles dois não adianta insistir, eles só
ficam bem quando ambos decidem se despir, se abandonar, e ai eles se encontram.
Quando a noite já ia
longe, e o fogo estava no seu auge, um a um contou sua história. Um deles tinha
medo do contato, o outro não gostava de cheiros. Um não suportava ver, e o
outro detestava ouvir, e tinha também aquele que não admitia se arrepiar e aquele
que dizia a todo o momento que o sabor era o pior castigo.
Quando a maioria já
tinha desabafado e sentiam-se livres, perceberam que dois deles continuavam
calados, Pensaram em deixar pra lá, mas isso não seria justo com o grupo.
Aqueles dois eram quase pais de todos que se encontravam ali, e se alguém
precisava desabafar, com toda certeza eram eles.
“Eu adoro tudo que vocês
não suportam. Meu erro, confesso, é amar tudo isso: o arrepio, o som, o cheiro
e o contato. Não consigo me imaginar sem ter isso. Me alimenta. Me faz acordar
vivo todos os dias e mais do que isso, me faz querer viver, pulsar. Sem vocês
eu não seria o que sou, mas sem mim vocês não passariam tanta dor. Mas o que
posso fazer se sou egoísta? Na verdade "incrédulo" é a palavra, pois
não acredito em nada do que afirmaram. Como a pele não vai gostar de se
arrepiar, e as mãos de ter contato? Será que não sentem a eletricidade que nos
acomete quando isso acontece? “.
E continuou: “Como a
senhora, dona língua, se atreve a dizer que não gosta do sabor? Não sabes como
te invejo. Invejo a vocês todos, pois tudo que recebo é um décimo do que
acontece com vocês, e ainda assim eu amo isso tudo. E vocês gostam também, pois
eu sei dona orelha, eu sei como a senhora se derrete quando começam com os sussurros
no seu pezinho, e o senhor, seu olho, nem disfarça a atração e a vontade que
não te deixa se fechar. Meu fardo é ter que sentir pelas reações de vocês, e isso
é muito duro de carregar.”
Em todo momento o
cérebro ficou calado, apenas olhava, bufava e revirava os olhos. Segundo ele de
nada adiantaria dizer o seu fardo, e também não estava preparado para admitir
certas coisas, mas resolveu desabafar.
“Meu fardo são as
lembranças. Elas me fazem racional e emocional. Odeio lembrar. Nada é pior do
que isso.”
O cérebro é assim,
sempre coloca suas necessidades e sofrimentos em degraus maiores que as dos
outros.
A música parou, todos
ficaram em silêncio. Em unanimidade (mesmo a contra gosto) decidiram parar as
sensações por ali. Se não fazia bem, por que continuar carregando tal fardo?
Aceitaram, apagaram o
fogo e todos retornaram as suas casas. Sentiam-se leves, mesmo aquele que não
queria essa solução.
Dias se passaram e
problemas maiores começaram a surgir. Abstinência foi o diagnóstico.
Dormência nas mãos, frio
na pele, olhos sempre aguados, nariz corisando e outros sintomas. Nenhum médico
soube o que fazer e quando não tinham mais solução, outra reunião foi
convocada.
O coração se adiantou e
disse que não queria perder tempo, mandou o papo reto: “O que fazer quando o
que te faz mal, também te faz bem? Se o mesmo agente causador dos momentos
bons, que vocês não admitiam é claro, também os faz ficar assim, abstinentes?
Quando tiverem uma resposta, me avisem, pois eu estou prestes a parar. E sem
mim, o que resta de vocês?”.
Reunião encerrada, caso
sem solução. Ouvi dizer que ainda estão em abstinência, pois infelizmente não
são os únicos que precisam tomar posição, tomar partido e correr pra mudança. A
cura é também a doença. Parece ser um tipo antigo de vírus que ainda não tem
solução, só ele mesmo é capaz de ajudar o doente. Se ele se modifica, se
transforma e aplica a sua mudança no corpo adoentado, aquele corpo ganha vida
novamente, ganha cor, volta a pulsar. Mas se o vírus decide continuar negativo,
então as coisas permanecem iguais.
A boa noticia, é que os
mais otimistas afirmam que o risco de morte por falência dos órgãos é zero, mas
ficarão sequelas enormes, como a de não conseguir amar tão cedo novamente.